CELSO ARNALDO ARAÚJO
Como diria o Zózimo, não convidem Dilma Rousseff e Nelson Rodrigues
para a mesma frase. Quando os dois se encontram num único período,
máximas sobre futebol lapidadas sílaba a sílaba pelo frasista impecável
saem mancando, distendidas, fraturadas ─ tornam-se dúvida não só para
domingo como para sempre.
Ok, isso não ocorre só com Nelson. Ao tabelar com qualquer craque da
palavra, Dilma é impiedosa: já agrediu até Camões, da seleção
portuguesa, e seu Velho do Restelo. Outros autores nacionais, como se
verá adiante, levaram dela botinadas de cartão vermelho. Mas Nelson
Rodrigues, em tempo de Copa, tem sido sua vítima preferencial. Porque
ninguém escreveu melhor sobre a pátria em chuteiras (“de chuteiras”,
segundo Dilma) do que Nelson. E ninguém o tinha tratado tão mal.
Depois de bater bola no cérebro baldio da presidente, qualquer frase
de Nelson Rodrigues, originalmente épica no sentido e helênica na forma
perfeita, fica inutilizada para o futebol. Seu único consolo é ter um
passado glorioso: foi, um dia, uma frase de Nelson Rodrigues. É o caso
da antológica expressão “complexo de vira-latas”, com que o genial
cronista esportivo contestava o pessimismo generalizado em torno das
chances da seleção brasileira na Copa da Suécia.
Esse complexo nunca mais foi o mesmo depois de tentar passar por
Dilma, no ano passado, em discursos proferidos em diversos eventos
relacionados à Copa. Manipulado pelo dilmês, esse legítimo puro-sangue
rodrigueano ganiu como um vira-lata sarnento. Pior: foi usurpado pela
presidente não para defender a seleção canarinho, como no contexto
original, mas para retrucar abalizadas críticas a seu governo por parte
da turma do “imagine na Copa” (veja o texto do Augusto Nunes na seção Vale Reprise).
As chuteiras imortais de Nelson Rodrigues foram novamente convocadas
por Dilma, na inauguração do estádio Arena das Dunas, em Natal, para,
outra vez, dar uma canelada no negativismo dos críticos. Mas era uma
armadilha. Na coletiva de imprensa, indagada por um repórter se a
exclusão da Arena da Baixada, com obras atrasadíssimas, não seria um
vexame para o Brasil, Dilma engatou um “meu querido” imaginário e
soltou:
─ Ô gente, pelo amor de Deus! Não vamos fazer… Essa (sic) é o tipo da
pergunta que mostra aquilo (sic) que o Nelson Rodrigues dizia: “Não é
possível apostar no pior”.
Hummmm…Nelson dizia isso? Quando, onde, por quê? Mesmo quem não é
expert em Nelson estranhará que o cronista que escreveu “no Maracanã,
vaia-se até minuto de silêncio”, ou “na vida o importante é fracassar”,
tenha cunhado uma frase tão murcha. Primeiro, porque sempre é possível
apostar no pior ─ ou no Jockey Club não haveria azarões. Segundo…porque
não parece Nelson. A frase não é redonda, não é lapidar, não é
autodepreciativa, como “o brasileiro é um feriado”, não é… Nelson
Rodrigues.
Bem, Nelson não deveria estar nos seus melhores dias. Só pode ser
isso. Alguma hipótese de ele nunca ter dito isso? Claro que não. Afinal,
a frase foi reproduzida pela presidente da República ─ e os jornalões
do dia seguinte a reproduziram sem o menor questionamento. Algum risco
de Angela Merkel colocar coisas na boca de Brecht para defender seu
governo? Obama inventar um pensamento de Norman Mailer para referendar
sua proposta polêmica de seguro-saúde? Claro que não.
Mas, espere: quem disse que ele disse isso foi ninguém menos que
Dilma Rousseff ─ de quem nunca se ouviu uma frase sequer razoável em
três anos de governo, incluindo as de outros, invariavelmente deformadas
pela sintaxe do dilmês. Que não acerta nomes de cidades e de pessoas ─
outro dia, referiu-se três vezes a seu novo ministro da Saúde, o
consultor Arthur Chioro, como “Choiro”, um sinal de como seu Ministério é
a escolhido a dedo entre pessoas de sua total confiança.
Ok, mas, no caso de Nelson, dê-se a ela o benefício da dúvida. Ela
realmente acha que ele dizia isso? Ou tirou esse pensamento tosco do
mesmo lugar de onde saem seus próprios pensamentos? Um e-mail ao amigo
Ruy Castro, magistral biógrafo de Nelson e organizador de sua obra
completa para a Cia. das Letras, agora transferida para a Agir/Ediouro,
buscou a resposta junto ao oráculo: há alguma frase dele remotamente
similar a “não é possível apostar no pior?”.
A resposta de Ruy foi incontinenti e definitiva:
“Para fazer o livro Flor de obsessão — As 1000 melhores frases de Nelson Rodrigues,
naturalmente consultei milhares de textos de Nelson. Afinal, de quantas
se tiram as 1000 melhores? E nunca vi nem sombra dessa frase”.
Óbvio ululante. Mas Dilma Rodrigues, cronista bisonha, estreou com
enorme repercussão. “Não é possível apostar no pior” já passou à
história como uma frase de Nelson Rodrigues citada pela presidente do
Brasil. Digite-a agora, entre aspas, no Google. Hoje de manhã já havia
4750 resultados… todos atribuídos à parceria Dilma Rousseff-Nelson
Rodrigues. O dilmês, o idioleto-fenômeno falado pela presidente, deforma
não só o que é como o que nunca foi. O que é pior?
Há alguns meses, Dilma enviou um bilhete ao acadêmico Ivan Junqueira,
divulgado pelo Palácio para demonstrar o pendor da presidente pela alta
cultura, depois de supostamente ter lido seu livro “Poesia Reunida”.
Esse bilhete, aliás, é uma das três únicas manifestações escritas do
dilmês conhecidas:
“Meu caro Ivan, a vida, como você escreveu, é pior que a morte;
acreditar nisso nos dá força para compartilhar cultura e construir um
país melhor…”
Espere: a vida é pior que a morte? Claro que não. Era apenas Dilma
atribuindo ao refinado Ivan Junqueira uma frase de bilhete de suicida
iletrado. Em “A sagração dos ossos”, um dos poemas de “Poesia Reunida”,
há os seguintes versos:
“Sagro estes ossos que, póstumos,
recusam-se à própria sorte,
como a dizer-me nos olhos:
a vida é maior que a morte”.
Ah, bom: a vida é maior, não pior, que a morte ─ graças a Deus.
Na verdade, quem sempre aposta e investe no pior é Dilma Rodrigues.
Beranda
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